Por Sergio Vidal para o Ganja Talks
O uso medicinal da maconha não é uma novidade. Em verdade, os seres humanos conhecem esta erva há mais de 12.000 anos e sempre a usaram para tratar diferentes sintomas e enfermidades. No entanto, quando a planta foi tornada mundialmente ilegal na década de 1930, a ciência havia podido conhecer relativamente pouco de todo seu potencial terapêutico. Até a segunda metade do séc. XX, a maior parte dos usos eram oriundos de farmacopeias tradicionais e os preparados se restringiam à infusões, extratos, preparados alimentícios, emplastros feitos com diferentes tipos de cannabis, dentre outros , todos feitos sem maior controle dos índices e proporções de cada um dos princípios ativos produzidos pela planta. Os usos medicinais eram baseados no saber tradicional de diferentes povos e civilizações que fizeram uso dela ao longo dos milênios, mas a ciência moderna teve pouco tempo para estudá-la antes da sua criminalização.
Do início do séc. XX até os dias de hoje a cannabis sofreu e ainda sofre um processo de criminalização baseado em princípios morais e não-científicos que já estão sendo revistos na maior parte das Democracias mais sérias do planeta. No entanto, mesmo nesse período de obscurantismo no qual a cannabis passou a ser criminalizada ocorreram estudos científicos que proporcionaram novas descobertas a respeito da planta e suas propriedades medicinais.
Um dos principais ocorreu em 1965, quando o Dr. Rafael Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém, isolou pela primeira vez na história o composto mais ativo da planta e deu-lhe o nome de Delta 9 Tetraidrocanabinol, ou apenas THC, abrindo possibilidades para novas formas de compreender não apenas a ação da molécula no corpo humano, mas sua interação com os outros fitocannabinóides. A partir da década de 1970, diversos pesquisadores em todo mundo começaram a trabalhar com o THC isolado e/ou em combinação com outros cannabinóides, em busca de respostas para as dúvidas existentes sobre a forma de agir os potenciais medicinais e terapêuticos da maconha. Nessa época o laboratório Pfizer chegou a desenvolver um analgésico sintético análogo ao THC, cerca de 100 vezes mais potente, mas desistiram do projeto pois seus efeitos psicoativos também eram muito fortes. Inclusive, até hoje a maior parte das pessoas conhece apenas o THC como princípio ativo da cannabis, ainda que já se tenham descoberto dezenas de fitocannabinóides produzidos exclusivamente por vegetais da espécie cannabis.
Em 1992 cientistas trabalhando em parceria com o pesquisador Mechoulam descobriram uma substância produzida pelo organismo humano que mais tarde seria denominada anandamida (do sânscrito antigo, caminho da iluminação), uma molécula idêntica ao THC. Esse foi o primeiro passo para descoberta posterior do sistema endocannabinóide, uma parte até então ignorada do organismo humano que produz e utiliza substâncias semelhantes às encontradas na planta cannabis e tem relação importante com diferentes partes e funções vitais do corpo. A descoberta do sistema endocannabinóide abriu uma forma totalmente nova de compreender a interação dos fitocannabinóides com o corpo humano além, é claro, de criar um novo campo de estudo relacionado com um sistema existente no organismo humano, mas que até então era desconhecido.
Nas últimas décadas temos vistos mudanças no cenário político de muitos países com relação ao uso medicinal da maconha e, aos poucos, isso tem se refletido na produção acadêmica a respeito do tema, com um aumento dos estudos sobre os diferentes tipos de fitocannabinóides e suas aplicações terapêuticas. Hoje sabemos que a maconha produz naturalmente um número acima de 500 compostos, dos quais mais de 90 tipos produzidos exclusivamente por plantas dessa espécie, os chamados fitocannabinóides. Entre os mais conhecidos estão o THC 9, THC 8, THCA, CBN, THCV, CBC, CBG, CBDA e o CBD, conhecido também como Cannabidiol, que atualmente tem ganho maior destaque na mídia por ter sido o pivô de uma disputa política que está resultando na regulamentação parcial dos usos medicinais da cannabis no Brasil.
No entanto, a regulamentação no Brasil tem sido muito restrita e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária se preocupou em desenvolver apenas os protocolos de importação dos extratos apenas de plantas de cânhamo, com baixas concentrações de THC, já que a demanda tem sido em sua maioria por esse tipo de medicamento. É bastante explícita a precariedade dessa regulamentação restritiva ao compararmos com a realidade de outros países onde houve um avanço maior na exploração do potencial terapêutico da cannabis. Nesses contextos existem muitos tipos de empreendimento cultivando e selecionando as mais variadas plantas com potenciais genéticos para obter resinas com diferentes proporções e concentrações de princípios ativos. Nesses cenários também existem empreendimentos de nível farmacêutico ou industrial beneficiando as flores e resina para produzir diferentes produtos e medicamentos à base de cannabis.
Atualmente, em países onde há regulamentação plena do uso medicinal da cannabis é possível encontrar uma incrível variedades de produtos e medicamentos com as mais diferentes maneiras de administração dos fitocannabinóides, cada uma adequada a uma enfermidade ou sintoma específico. Assim os pacientes podem optar entre flores ou resina concetrada in natura, pílulas, pomadas, extratos sublinguais, adesivos transdérmicos, xaropes, supositórios, alimentos contendo princípios ativos, dentre uma inúmera quantidade de outras formas de administração. A cada dia alguma empresa da indústria farmacêutica nos países e estados onde há regulamentação dos usos medicinais surgem com alguma novidade: novos estudos sobre os efeitos de um fitocannabinóide pouco conhecido; um novo método de extração dos princípios ativos ou mecanismo de administração; ou algum produto inovador desenvolvido para alguma doença específica.
Hoje em dia já sabemos que cada fitocannabinóide isolado deve ser considerado um princípio ativo com potenciais terapêuticos e intensidades e tipos de efeitos variados, bem como cada combinação de fitocannabinóides tem um determinado efeito em um ou outro quadro sintomático ou patológico. Para cada doença ou sintoma deve ser testada uma combinação específica de fitocannabinóides e ficar atento também à interação dessa medicação com outros fármacos. No Brasil, apesar da ANVISA ter emitido autorizações somente importação de medicamentos com baixo teor de THC, nada impede que seja solicitado à Agência autorização para importação ou produção nacional de medicamentos ricos em THC ou outros fitocannabinóides. Em verdade, nenhuma empresa ou instituição até o momento entrou com pedido para efetuar isso, então sequer podemos dizer que a Agência negou um pedido deste tipo, ela apenas não emitiu tal autorização porque ninguém até o momento sequer a solicitou.
De fato, o que há no Brasil não é apenas uma falta de iniciativa das autoridades para regulamentarem de maneira plena, mas também há uma escassez de uma demanda organizada de instituições interessadas em cultivar e produzir medicamento. Faltam empresas, empreendedores, instituições que tenham interesse em explorar este mercado ou pesquisar este tema. O que há é uma enorme demanda de pacientes ávidos por obterem o medicamento pronto para utilizar em seus respectivos tratamentos, mas não encontram nenhuma oferta nacional de medicamentos e ainda se deparam com desinformação entre os médicos e profissionais de saúde a respeito dos protocolos para importação do remédio. No cenário brasileiro atual a maconha medicinal está legalizada, mas falta uma regulamentação plena que garanta acesso a diferentes produtos com variadas configurações de fitocannabinóides e ampla opção de métodos de administração. Só dessa maneira seremos capaz de suprir todas as necessidades dos pacientes. Esse não é um processo fácil e exige não apenas envolvimento da ANVISA e outras instâncias do Estado, mas especialmente de diferentes setores organizados da sociedade civil.
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