terça-feira, 16 de agosto de 2016

História do uso Medicinal da Maconha no Brasil


Antes de qualquer palavra sobre a “história do uso medicinal da maconha no Brasil” ou de qualquer outro aspecto da história brasileira é preciso fazer a ressalva de que, na verdade, ela não é apenas tudo que ocorreu nos últimos 500 e poucos anos. Antes dos colonizadores chegarem aqui o território já era ocupado por inúmeras nações indígenas, muitas das quais foram subjugadas ou exterminadas, outras tiveram uma diminuição drástica na sua população e perderam quase todo território que possuíam, ficando restritos a reservas demarcadas pelo estado brasileiro. A partir de 1550, os colonizadores começaram a trazer negros escravizados da África, oriundos de diferentes nações africanas, muitos deles com tradição e cultura do uso da cannabis para diferentes fins. O que quero dizer é que qualquer aspecto da história do Brasil, incluindo aí os que tiverem relação com a cannabis, é composto da relação de diferentes povos e culturas, cada uma delas com sua própria tradição e histórico de relações com esta planta. Ou seja, a história dos usos medicinais da maconha no Brasil não é formada por povos que desconheciam a cannabis, muito ao contrário, é composta da mistura de diferentes culturas e tradições do uso da planta, que se mesclaram, modificaram, competiram etc, para formar a história da qual hoje contaremos uma pequena parte.


Raízes do uso da maconha na medicina Brasileira

Como vimos em outros textos, a maconha sempre esteve presente na economia da maior parte das civilizações humanas, já há milhares de anos. Portugal sempre foi uma nação conhecedora dos usos da cannabis, especialmente do linho-cânhamo para uso têxtil. Tanto que em 1515 a cotação dos valores dos itens à disposição no mercado de Portugal colocavam o cânhamo como sendo o produto mais valioso. Em 1534 o médico naturalista português Garcia da Orta mudou-se para Goa, na Índia, onde passou a estudar a medicina tradicional do povo indiano e o uso de plantas. Em 1563, Orta publicou o livro Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, trazendo os dados de décadas de seus estudos. Em sua obra o autor faz descrições detalhadas dos vegetais de uso medicinal, incluindo a cannabis e sua resina. Sobre a cannabis, são 4 páginas dedicadas à descrição da cultura do bangue e suas propriedades, incluindo a primeira descrição no ocidente sobre os efeitos psicoativos referindo-os com o termo “viagens”. O livro foi publicado também inglês, francês e italiano, mas curiosamente só foi reeditado novamente em português em 1895. Durante muito tempo a obra de Garcia D´Orta foi a principal referência sobre os usos medicinais dos extratos de cannabis.

A partir de 1550 a Colônia começou a receber levas de escravos trazidos da África para trabalhar nas fazendas de produção de açúcar. Muitos deles já conheciam as propriedades da cannabis para curar doenças e como fumo recreativo e, segundo alguns historiadores, trouxeram consigo para o Brasil algumas sementes de liamba (um dos nomes dado à erva na época). O hábito escravo de consumir erva, mesmo para fins recreativos ou de confraternização social, eram amplamente tolerados pelos senhores de engenho e só passaram a serem reprimidos no início do séc. XIX, nos centros urbanos do sudeste do país. Dizem alguns pesquisadores que inclusive a própria Imperatriz Carlota Joaquina (1775-1830) consumia cannabis para aplacar suas cólicas menstruais.

Homeopatia e maconha medicinal

Em 1830 uma Lei municipal passou a proibir o “pito do pango”, ou seja, a prática de fumar maconha passou a ser criminalizada na cidade do Rio de Janeiro. Os consumidores podiam pegar 3 dias de prisão e os comerciantes recebiam uma multa. A proibição não valia para os usos medicinais, mas acabou tendo como consequências na diminuição do acesso à erva nos pontos de venda na cidade. Só em 1850 o Brasil ganha uma regulamentação nacional da medicina e farmácia e começa a regular e controlar a fabricação e distribuição de medicamentos, ervas, plantas, etc com propriedades medicinais. Mas não era uma proibição e sim uma lei com objetivo de regulamentar, restringindo a produção, distribuição e consumo apenas ao âmbito da medicina e terapia. Porém, na prática, com o passar das décadas essa regulamentação acabou tendo como consequência a extinção dos usos medicinais.

O médico Benoït Jules Mure, introdutor da homeopatia no país, fundou o Instituto Homeopático do Brasil (1844) e a Escola Homeopática do Brasil (1845), foi um grande defensor dos usos medicinais da cannabis em sua época. Bento Mure, como ficou conhecido, era discípulo de Charles Fourier e veio para o Brasil com a missão de implantar um Falanstério, na região onde hoje é fronteira entre o Paraná e Santa Catarina. Em 1847, Mure se mudou para o Rio de Janeiro, onde passou a fazer experimentos utilizando Cannabis de variedades indianas e extratos da planta. As experiências de Mure com haxixe podem ser sintetizadas na obra “Armanase ou le règne de la capacité” (Armanase ou o Reinado da Capacidade), publicada somente após sua morte, em 1859. A obra merece um estudo à parte, não só por seu valor histórico, mas pelo depoimento das experiências espirituais com haxixe e por revelar um pouco como era o cenário brasileiro do séc. XIX, no qual a planta era proibida por uma lei municipal do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que seguia sendo consumida por muitos. Na obra, Mure revela uma experiência curiosa, afirmando que, apesar de a planta estar proibida no Brasil e no Egito, conseguiu uma amostra para preparar uma extrato, furtando algumas flores de um pé de cannabis que encontrou florindo no jardim do Palácio de D. Pedro II. Mure continua sua obra narrando suas impressões e experiências na sua relação com a planta, afirmando aos seus leitores que:

“Si alguien realmente lo desea, le diremos: póngase em condiciones convenientes. Eleve su inteligencia por el estudio, y su corazón por la oración y tome Cannabis indica. Le hará compreder la imaginación, las abstracciones que formulamos, a duras penas, para su espíritu”

1932 e a extinção dos usos medicinais

A partir dos primeiros anos do séc. XX alguns cientistas brasileiros, aliados com alguns políticos eugenistas, começaram uma campanha associando a maconha com a criminalidade, loucura, violência, dentre outros comportamentos que eles mesmos atribuíam às populações pobre, negras, afrodescendentes e marginalizadas. Em 1932, após anos de trabalho desses políticos e cientistas comprometidos com o paradigma eugenista, racista, a maconha finalmente foi proibida em todo território nacional, numa medida contrária à opinião dos médicos e farmacêuticos da época, que defendiam que a erva, seus extratos e medicamentos deveriam continuar acessíveis para todos os cidadãos que deles precisassem, ao menos para uso na medicina. A partir daí a maconha passou cada vez mais a ser vista de forma negativa e a memória dos seus usos medicinais foi sendo apagada e substituída pela ideia de que a maconha é a “erva-do-diabo”, um dos maiores problemas da sociedade brasileira.

As Pesquisas Brasileiras sobre Maconha Medicinal

Mesmo proibida e com uma forte imagem negativa associada à erva, muitos cientistas sérios sabiam dos dados históricos de milênios de uso medicinal da cannabis. Os egípcios já usavam a erva para tratar glaucoma e cólicas 1200 anos antes de Cristo, e os chineses tratavam epilepsia, dores crônicas dentre outras doenças. Inúmeros povos fizeram uso medicinal da cannabis para os mais variados fins, como já vimos em outros artigos. É claro que a ciência moderna séria não poderia ignorar tais fatos. No final da década de 1960 diversos cientistas em todo mundo começaram a fazer pesquisas com cannabis, numa retomada dos saberes científicos sobre a planta que ficaram ignorados após a proibição. Em 1965 o pesquisador Rafael Mechoulam da Universidade Hebráica de Jerusalem isolou pela primeira vez o Delta 9 Tetrahidrocanabinol, ou THC, molécula mais psicoativa da resina da cannabis, abrindo portas para novos olhares sobre a erva.

Ainda na década de 1970 os pesquisadores brasileiros, liderados pelo farmacólogo Elisaldo Carlini, pioneiros nos estudos sobre os potenciais medicinais e passaram a afirmar no meio científico que a molécula tinha uma ação farmacológica própria com bastante potencial medicinal. Os estudos com diferentes amostras de maconha de proporção de THC semelhante, mas variando em quantidades de CBD tinham efeitos muito diferentes nas cobaias (ratos). Isso fez com que os pesquisadores suspeitassem de que o CBD tinha um efeito particular. Então começaram a trabalhar com o CBD isoladamente, buscando compreender melhor sua ação. Em 1973 os primeiros estudos confirmaram os efeitos sedativos e antiepilépticos, em aplicações experimentais com cobaias (ratos), efeitos esses relatados pelas por todas as tradições milenares de uso da cannabis.

Em 1974 num estudo com voluntários humanos, estes receberam doses combinadas de THC e CBD. Os que receberam doses de THC e CBD combinados relataram menor ansiedade e maior sensação de prazer do que aqueles que receberam as combinações com baixa concentração de CBD ou THC puro. Esse estudo foi pioneiro ao procurar analisar o tipo de experiência psicoativa proporcionado por diferentes combinações de fitocannabinóides. Nesse mesmo estudo foi verificado que doses elevadas de THC sem a presença do CBD podem provocam ansiedade e induzir sintomas semelhantes à psicose, ou desencadear quadros de esquizofrenia. Esses efeitos sumiam quando o THC era aplicado em combinação com o CBD, o que sugere que ele tem o poder de manter tais efeitos sob controle. Esse estudo abriram as portas para a possibilidade do uso do CBD para o tratamento da ansiedade e como um antipsicótico. Esse fato foi confirmado em outro estudo de 1982, no qual ficou claro que o THC isoladamente, em grandes quantidades, atuava como provocador de ansiedade e sintomas psicóticos, enquanto em administração conjunta com o CBD esses efeitos desapareciam. Diversos estudos posteriores, comparando o CBD com antipissicóticos tradicionais bem estabelecidos, como o haloperidol e a clozapina, revelaram que o fitocannabinóide tem eficácia comparável a ambos, tendo uma atuação semelhante aos chamados antipsicóticos atípicos.

Num estudo publicado em 1979 os pesquisadores administraram em voluntários com queixa de insônia, em diferentes momentos, doses de 40, 80 e 160mg de CBD, ou Placebo (medicamento sem efeito, usado para testar a eficácia de algum remédio). Todos recebiam o “medicamento” 30 minutos antes de deitarem. O resultado foi que na amostra de pessoas que tinham tomado 160mg de CBD o número de voluntários que dormiu 7 ou mais horas foi significativamente maior. Num estudo posterior, voluntários recebiam durante a manhã doses de placebo, ou doses de 300 ou 600mg de CBD, após terem dormido ao menos 6 horas durante a noite. Tanto nos voluntários que receberam 300mg quanto os que receberam 600mg, foi verificado um aumento considerável da sonolência após 1 ou 2 horas de ingestão.

Estudos mais recentes, realizados em 1993, comparou os efeitos do CBD com o de ansiolíticos tradicionais como o diazepam e a ipsapirona, em pacientes com Transtorno de Ansiedade Social, que ainda não haviam sido tratados. A amostra partiu de 2313 estudantes universitários voluntários que responderam um questionário de diagnóstico, do qual foram selecionados uma amostra de 2 grupos de 12 estudantes com TAS e 12 saudavéis, com perfil social e econômico similar aos pares do outro grupo. Ambos foram submetidos a testes específicos que reveleram que o CBD tem efeitos de atenuar a ansiedade semelhantes aos das substâncias tradicionalmente usadas para este proposito.

A redescoberta da maconha medicinal

Na década de 1990 o movimento pela re-legalização da maconha medicinal em todo mundo começou a tomar proporções impossíveis de reverter. Os dados científicos gerados nas décadas anteriores, aliado ao número crescente de ativistas fez com que diferentes países e estados nos E.U.A. aos poucos revessem duas políticas sobre o uso medicinal da cannabis.

No Brasil, apesar da inúmera pressão dos ativistas pela legalização da cannabis desde o final da década de 1990, somente em 2006 foi aprovada uma lei sobre drogas que admite os potenciais medicinais da cannabis e afirma que é possível que o estado emita autorização especial para fins de uso medicinal ou pesquisa científica com a erva. No entanto, apesar de vivermos atualmente com uma legalização que entrou em vigor em outubro de 2006, com a Lei 11.343, nos falta uma regulamentação. Somente em 2014 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA –, órgão responsável por emitir as autorizações especiais, começou a receber pedidos de pacientes.

No dia 27 de março de 2014 foi lançado o curta-metragem “Ilegal: A vida não espera”, idealizado e produzido pelo jornalista Tarso Araújo, contando a história da família de Anny, uma menina que tem epilepsia de difícil controle. No dia 31 um advogado entrou com um pedido de liminar para emitir que a ANVISA emitisse a autorização especial e no dia 3 de abril a justiça concedeu. Ao longo do ano Tarso, aliado com outros jornalistas, ativistas e principalmente pacientes e familiares, também começou a campanha “Repense”, que se propunha falar de maconha medicinal para pessoas que eram completamente leigas no tema, buscando como resultado estratégico focar na primeira fase da campanha o CBD, por não ser psicoativo e ser mais aceito socialmente. A campanha foi um sucesso e em poucos meses o tema da maconha medicinal estava em todos os jornais do país, incluindo programas de televisão campeões de audiência. Os jornalistas engajados na campanha foram responsáveis por um dos períodos históricos, se não o maior, no qual mais o tema maconha medicinal foi falado em todos os tipos de mídia impressa, digital, televisionada e rádio. O país inteiro passou a falar de CBD, óleo de maconha e de como isso podia ajudar pessoas doentes, principalmente crianças com epilepsia que precisam usar extratos ricos em CBD, foco inicial da campanha. Centenas de pais de pacientes começaram a procurar o grupo responsável pela Repense, ou buscar por meios próprios pressionar a ANVISA para regulamentar ao menos a importação dos extratos de cânhamo, ricos em CBD e com menos de 1% de THC. Depois de Anny já são mais de 1000 pacientes autorizados a importar extratos de cannabis e outros medicamentos. Até janeiro de 2015 a ANVISA permitia apenas a importação de extratos contendo menos de 1% de THC, atualmente permitem importação extratos com mais de 1% THC, desde que se restrinja a ser menor que a de CBD.

É importante destacar também que atualmente existem diferentes Associações e grupos lutando pelos direitos dos pacientes, com diferentes níveis de estrutura e tipos de atuação, muitas delas inclusive mantendo diálogo com a ANVISA. Atualmente podemos dizer que o país está em processo de regulamentação, mas falta demanda de diferentes tipos nesse processo, principalmente de empresas, instituições de pesquisa, cultivadores organizados em cooperativas de produtores, enfim, demanda do setor que poderia ocupar o papel de cultivar e produzir o medicamento. Agência não pode emitir autorização para nada se não houver demanda. Somente a partir da demanda organizada é que foi responsável por fazer com que fosse regulamentado o protocolo de importação. Para que seja regulamentado o protocolo de cultivo e produção do medicamento em território nacional é necessário que haja uma maior demanda dos setores da sociedade que poderiam ocupar esses espaços.

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