segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Como funciona a indústria do cânhamo, a maconha que não chapa

Por Sergio Vidal, para o Ganja Talks

Quando a maconha foi proibida em todo planeta após diferentes países assinarem o Tratado Internacional sobre Drogas (1961), foi deixada uma brecha para que esses países signatários pudessem continuar cultivando cânhamo e explorando essa indústria milenar, algo que ocorre até os dias de hoje em diferentes países. O cânhamo é uma linhagem da cannabis que produz quantidades muito baixas de THC, não ultrapassando 1% da composição da resina. Por outro lado, essas linhagens de cannabis produzem grandes quantidades de fibras que podem ser utilizadas para diferentes finalidades. O cânhamo também é conhecido por produzir uma grande quantidade de CBD, outro fitocannabinóide com propriedades medicinais. Hoje em dia existe um mercado mundial de produtos à base de cânhamo sustentado por diferentes países produtores, dos quais falaremos um pouco mais detalhadamente nas próximas linhas.

Cânhamo – a maconha que não “faz a cabeça”

Cânhamo é o nome dado à maconha quando ela é cultivada com o objetivo de utilização do tronco para obtenção de suas fibras e polpa, ou de suas sementes e do óleo extraído delas (rico em diversos nutrientes e excelente biocombustível). São duas as principais diferenças do cânhamo para a maconha: Técnicas de cultivo e genética. As técnicas de cultivo garantem que a planta não terá galhos e, consequentemente, terá muito poucas flores, já que o foco do crescimento será apenas o tronco para obtenção de fibras. A seleção genética e o cruzamento de linhagens específicas garantem que as plantas tenham entre 0,3% e 1% de THC (substância psicoativa da maconha), dependendo da legislação do país em questão.

Quando é cultivada para obtenção de fibras ou sementes as mudas são semeadas o mais próximo possível umas das outras, assim elas crescem concorrendo por luz e desenvolvem o máximo de altura possível. Não há desenvolvimento de galhos e ramos laterais, obtendo com sucesso troncos muito longos, com fibras bem compridas, que podem ultrapassar 5 metros. Também quase não há produção de flores ou resina, pois as inflorescências se concentram apenas nos topos das plantas e não há separação entre machos e fêmeas, para maximar a produção de sementes. As poucas flores nos topos das plantas fêmeas ficam cheias de sementes. Os troncos fornecem uma das melhores fibras têxteis naturais existentes, matéria-prima para inúmeros produtos.

Segundo um relatório publicado em fevereiro de 2015 pela Congressional Research Service, entidade de cunho técnico-científico responsável por orientar o Congresso dos EUA e a Casa Branca na tomada de decisões políticas, atualmente são mais de 25.000 produtos que podem ser feitos utilizando como matéria-prima o cânhamo, separados em 9 tipos de mercado: agricultura, têxteis, reciclagem, automotivo; moveis, alimentícia (bebidas e comidas), papéis, construção civil e cuidados pessoais/medicamentos. Todos produtos feitos com linhagens de cannabis com menos de 1% de THC, ou seja, sem efeitos psicoativos.


Ainda segundo o relatório, atualmente são cerca de 30 países onde o uso industrial do cânhamo, a cannabis não-psicoativa, é legalizado, sendo que alguns deles jamais criminalizaram esse mercado, sendo a China de longe o maior produtor. O documento afirma ainda que é difícil estimar o tamanho e lucratividade do mercado global, mas a Associação das Industrias do Cânhamo (Hemp Industries Association – HIA) afirmava que só em 2013 foram 581 milhões em produtos de cânhamo consumidos somente nos EUA, entre produção nacional e importação, revelando o potencial econômico que esse mercado pode alcançar.

Cânhamo e as linhagens de plantas ricas em CBD
Quando as legislações dos países produtores de cânhamo passaram a querer diferenciar cânhamo de maconha e exigir o controle dos índices de fitocannabinóides em cada linhagem cultivada, no intuito de manter os índices de THC abaixo dos 0,3 a 1%, começaram a descobrir que as linhagens com baixos índices de THC são ricas em um outro importante fitocannabinóide, com diversas propriedades medicinais comprovadas, o CBD. Atualmente muitos produtores passaram a fazer cruzamento de linhagens de cânhamo com linhagens produtoras de flores, para proporcionar plantas ricas em CBD que também tenham como característica alta produção de flores e resina, mas que mantenham baixa proporção de THC. Além da seleção e cruzamento genético, os produtores de extratos de cannabis ricos em CBD também utilizam as técnicas de cultivo que mantém as plantas afastadas umas das outras, proporcionando o desenvolvimento de galhos laterias e maior quantidade de flores e resina. Muitos produtores de cânhamo para extração de fibras também aproveitam essa característica para extrair o óleo do resto das plantações. Ainda que menos concentrado em CBD do que o óleo extraído de plantações destinadas exclusivamente para produção de remédio, os óleos extraídos de plantações para extração de fibras também mantém taxas de CBD com potencial terapêutico e têm ajudado muitos pacientes.

A Indústria do Cânhamo no Brasil

Como já falamos em outros artigos aqui no site, e como bem sabe qualquer pessoa que tenha se aprofundado um pouco mais na história do Brasil que não contam nas escolas, desde o início da colonização até o início do século XX, muitos brasileiros cultivaram legalmente maconha em diversas regiões do país, inclusive o próprio governo, por meio da Real Feitoria do Cânhamo e outras iniciativas oficiais. As produções tinham como objetivo principal a extração das fibras das plantas, à época, principal cultivo têxtil em todo mundo. Mas o cultivo era tão difundido culturalmente que também havia muitos usos para fins medicinais e suas sementes, embora não tendo princípios ativos, mas apenas nutrientes benéficos e óleos vegetais, eram usadas como alimento humano e matéria-prima do óleo combustível para lamparinas, dentre outros usos registrados em documentos. Diversos documentos e estudos comprovam que desde a colonização até sua proibição total em 1932, e mesmo depois, a planta in natura, extratos da erva ou remédios feitos com ela eram considerados de uso legítimo e recomendado por médicos e curadores para tratar diferentes doenças. A indústria do cânhamo no país era tão intensa que em 1876 chegou a ser considerado o principal produto da nossa agricultura por um dos mais prestigiados periódicos da época.

Seja cultivada para produção de medicamentos ou para a indústria têxtil ou outras, as plantas da cannabis se adaptam muito bem ao clima árido do Sertão. Além dos documentos históricos que provam que o Brasil cultivo cânhamo por muitos anos, temos também o cultivo tradicional de linhagens ricas em THC, cultivadas de forma clandestina em todo o território do polígono das secas, numa produção voltada para o mercado ilegal da droga. A regulamentação da indústria do cânhamo e dos usos medicinais de variedades com baixo teor de THC podem ser a solução não apenas para tornar o Sertão Brasileiro um polo produtor inserido na economia nacional, mas também para dar à população camponesa alternativas reais frente ao assédio e exploração de criminosos ligados ao tráfico, algo qe ocorre com frequência atualmente. Essa medida poderia forçar uma quebra do mercado ilegal de maconha no polígono das secas de duas maneiras: 1) O pólen das plantas de cânhamo (com menos de 1% de THC) pode percorrer dezenas de quilômetros através das correntes de ar e certamente polinizariam as fêmeas cultivadas de maneira ilegal, fazendo com que a cada colheita as plantas de maconha dos cultivos clandestinos percam potência em THC, inviabilizando seu uso como droga recreativa; 2) aumentaria a oferta de empregos nessas regiões, diminuindo a vulnerabilidade das populações camponesas frente ao assédio de traficantes.

Mas o cultivo de cânhamo são legítimos e legais no Brasil?

Essa não é uma resposta fácil, pois envolve não apenas o que diz a lei brasileira sobre drogas, mas também os Tratados Internacionais sobre o tema, dos quais o Brasil é signatário. Na prática, no Brasil não há nenhuma empresa produzindo cannabis para fins medicinais ou cultivando cânhamo para uso industrial. Porém o país pode regular a matéria como bem entender, já que todas as outras nações onde o uso medicinal da maconha ou a indústria do cânhamo são legalizados, assim como o Brasil, também assinaram os Tratados Internacionais sobre Drogas, no qual se comprometem criminalizar e combater penas o cultivo e produção de maconha que se destinem a fins não-medicinais. Os próprios Tratados sobre drogas afirmam que os países podem regulamentar a questão dos usos medicinais da maneira que for mais conveniente para cada nação, bastando apenas ter uma Agência responsável que se reportará à Organização das Nações Unidas sobre a matéria. No caso do Brasil seria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.

Isso significa que não há nenhum artigo ou cláusula nos Tratados ou qualquer outro compromisso exterior que impeça o Brasil de legalizar e regulamentar totalmente o cultivo, produção e usos medicinais e industriais. Ao fazer isso não estaríamos infringindo nenhum dos artigos dos Tratados Internacionais. Em tese, na verdade, já estamos fazendo, já que a lei de 2006 legalizou os usos medicinais, ainda que falte regulamentação através de portarias, decretos etc, conforme já falamos em outro artigo. Porém, na realidade prática falta muita vontade política no Legislativo, Executivo e Judiciário para fazer o país entrar de vez no debate com relação a esse tema e deixar de boicotar o futuro da nação, tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista dos direitos dos cidadãos ao acesso à saúde. Porém, nada vai ocorrer se não houverem cidadãos, instituições, grupos sociais, empresários e outros atores da sociedade civil pressionando para que essas mudanças ocorram. Espero que essas mudanças não demorem a ocorrer, ou continuaremos a sonhar em ser o país do futuro, com os pés atolados em políticas públicas e leis ultrapassadas.

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