Por Sergio Vidal, autor do livro Cannabis Medicinal introdução ao Cultivo
Existe forma de usar maconha legalmente no Brasil? O que diz a Lei sobre os usos medicinais, científicos, religiosos, industriais e recreativos? Existem mesmo caminhos legais para cultivar a erva no país? Nesse artigo falaremos sobre essas e outras dúvidas e mostraremos que, ainda que seja um caminho longo, difícil e cheio de entraves legais, é sim possível fazer uso legal da maconha no Brasil, mas tudo depende de muito trabalho, luta e disposição para enfrentar batalhas políticas, burocráticas e judiciais.
Sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – ou de algum(a) Juíz(a) ninguém no Brasil pode semear, cultivar, beneficiar, importar ou fazer qualquer tipo de uso da maconha ou dos seus derivados. Porém, por mais que todo cenário político e social a sua volta lhe diga o contrário, você precisa acreditar nos fatos: Existem diversas maneiras de plantar e consumir maconha de forma legal dentro do nosso país, tanto para uso recreativo, industrial, medicinal, religioso e para fins de pesquisa. Porém, é preciso fazer um ALERTA: todos eles envolvem riscos, alguns não são considerados legais e serão legitimados apenas pela via jurídica, e mesmo os usos medicinais e científicos, que são legalizados, carecem de regulamentação. Nessa matéria falaremos a respeito de alguns das formas de organização que podem requerer autorização para cultivar legalmente ou se constituir legalmente e requerer autorização através do Poder Judicial. Por mais que seja virtualmente possível conseguir autorização da ANVISA ou da justiça para todas as situações, é importante ressaltar que jamais se deve praticar nenhumas das atividades previstas na Lei 11.343 sem ter a devida autorização em mãos.
O Nascimento da Pessoa Jurídica
Se o indivíduo deseja apenas conseguir acesso ao seu remédio para uso exclusivamente medicinal, ele pode entrar com o pedido diretamente à ANVISA, para importar o produto pronto ou cultivar e processar em sua residência. Para isso é necessário de um prescrição médica, afirmando que ele tem necessidade urgente do uso do medicamento, especificando os detalhes como dosagem, dentre outros. É importante juntar toda documentação do histórico do paciente ao pedido, e contar com o auxílio de um advogado. Porém, todo grupo de pessoas que queiram realizar legalmente qualquer uma das práticas previstas na Lei 11.343, precisam se organizar e constituir uma Pessoa Jurídica, que pode ser de diferentes tipos, mas que se dividem em dois grupos: Com ou sem fins econômicos, ou seja, se tem ou não interesse em lucrar com a prática realizada. As instituições com interesse de lucro são as indústrias, lojas e empresas e empresários e empreendedores dos mais variados setores. As instituições sem interesse de lucro realizam suas atividades, geralmente se organizam como instituição de estudo, pesquisa ou redução de danos e oferecem seus serviços e produtos a um preço de custo e tudo que é acumulado é investido na estrutura da instituição, de modo a beneficiar todos os membros da associação. Seja com ou sem interesse de lucro, todas as instituições devem contar com a ajuda de um advogado e um contador. No movimento pela legalização da maconha no Brasil existem muito advogados trabalhando por esse tema, mas ainda há uma carência de contadores. Para formalizar a Pessoa Jurídica sem interesse econômico, é necessário ter um endereço que será a sede, um Estatuto e um mínimo de 3 membros, que realizarão uma Assembleia Constituinte e registrarão isso em Ata, assinada por todos os sócios fundadores, a qual será levada pelo advogado da instituição, junto com o Estatuto e outros documentos, para dar entrada no registro. Após todo o processo burocrático, a aprovação do requerimento, publicação do número do CNPJ e autorização de funcionamento, o grupo, independente de qual tamanho seja, deixam de serem apenas indivíduos, para se tornar uma Pessoa Jurídica, com capacidade de se movimentar em outros níveis do jogo burocrático que indivíduos não têm como atuar.
MEDICINA E CIÊNCIA
As instituições que têm como objetivo apenas a realização de pesquisas ou que são focadas no uso medicinal têm o caminho mais seguro, mas nem por isso menos complicado. Desde 2006, empresas, instituições de ensino e pesquisa, ou associações sem interesse econômico com esses objetivos exclusivos podem requerer diretamente à ANVISA a autorização especial para realização das práticas previstas na Lei 11.343. Porém, é também um caminho difícil e o maior entrave é o fato de não haver regulamentação, ou seja, nem mesmo a ANVISA sabe quais os protocolos que devem ser usados para cada procedimento. Desde o começo de 2014, por exemplo, há uma crescente demanda de pacientes requerendo a autorização especial para importar medicamento e a Agência teve que desenvolver o protocolo para o procedimento. Mas o processo é esse mesmo, a ANVISA não vai demandar por isso, somos nós, Sociedade Civil que devemos nos organizar e requerer o que necessitamos e pressionar para que todos os tipos de protocolos sejam regulamentados com relação ao uso medicinal e científico. Hoje, já é possível empresas farmacêuticas requererem autorização para produzirem remédios à base de maconha, pacientes se organizar para cultivar e produzir o próprio remédio, e muitas outras coisas que a nossa imaginação permitir que seja feita com a Autorização Especial prevista na Lei desde 2006 e que exige com urgência uma regulamentação, para que não fiquemos somente restritos à importação de medicamento caro, com pouco controle de qualidade. No caso do uso medicinal, independente de constar na Lei que a ANVISA deve emitir a autorização, na Constituição Federal afirma o Direito à Saúde como central na nossa legislação. Ou seja, caso a ANVISA se negue a dar a autorização, é possível conquista-la através da Justiça, como muitos pacientes já têm conseguido.
INDÚSTRIA
O uso industrial do cânhamo (nome dado à maconha quando é cultivada para extrair fibras, quando são usadas linhagens que produzem quase 0% THC) não é previsto pela Lei 11.343, mas há uma brecha usada por diversos países que também assinaram o Tratado Internacional de Entorpecentes, em 1961. Diversas empresas e pequenos proprietários têm utilizado essa brecha e ganho judicialmente causas no mundo inteiro, pois o Tratado Internacional faz uma ressalva sobre o cânhamo, permitindo o a exploração industrial das cepas não-psicoativas da maconha, cujas fibras dos caules e os nutrientes das sementes podem ser utilizadas como matéria-prima em diferentes ramos da indústria. China, Rússia, Alemanha, Suíça, Suécia, Holanda, Espanha, E.U.A., Chile são apenas alguns dos países que atualmente cultivam cânhamo para explorar o potencial econômico da planta e em muitos deles o uso recreativo da maconha continua proibido, alguns punindo o consumo com penas bastante severas como a China, o maior produtor de cânhamo do mundo. No Brasil nenhum fazendeiro ou empresário se arriscou ainda, mas já é hora de alguém investir um pouco num requerimento especial à ANVISA para cultivar linhagens de maconha com quase 0% de THC, e explorar esse mercado por aqui, e se a ANVISA não der a autorização, entra com um processo na Justiça. O Brasil já foi um dos maiores exportadores de cânhamo, entre 1790 e 1890, pouco antes da maconha começar a sofrer uma campanha de difamação e associação com a criminalidade e finalmente ser proibida em todo país, em 1932. Clima e terras livres não faltam, nem tampouco as brechas na Lei e no Tratado Internacional que dão o lastro legal para a prática, basta disposição e investimento. Esse caminho pode ser tentado tanto por empresas como por Associações sem interesse econômico.
RELIGIOSO
O uso religioso da cannabis é reconhecido pelas ciências humanas há muito tempo, já que diversas sociedades a utilizam há milhares de anos. Legalmente esse tipo de uso é citado vagamente, fazendo referência ao entendimento do Tratado Internacional. No Tratado ficou acordado entre os países que onde houvesse uso tradicional ou religioso de plantas psicoativas isso seria respeitado. Mas o fato é que os países signatários ignoraram um pouco esse aspecto do uso das plantas psicoativas. Há regulamentação em muitos países. A folha de coca é usada tradicionalmente dentro da Lei em muitos países da América do Sul, assim como outras plantas psicoativas também, incluindo a ganja (maconha) na índia e países vizinhos. Na Constituição Brasileira também é previsto o direito à livre crença, ou seja, o uso religioso estaria supostamente amparado em dois pilares importantes: a Liberdade Religiosa prevista na Constituição e a ressalva no Tratado Internacional, sobre a tolerância aos usos tradicionais e religiosos de plantas psicoativas. Em tese, há dois caminhos possíveis. Primeiro, é preciso abrir formalmente uma Igreja, que por sua natureza não tem interesse econômico e em seguida fazer o requerimento à ANVISA ou ao Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (que também pode atuar nos casos de uso religioso, como foi o caso do Santo Daime), e aguardar a emissão da autorização. O segundo caminho é tentar a briga por uma autorização na Justiça. No entanto, na prática, no Brasil não há casos de igrejas que fizeram o requerimento e o único líder religioso que se arriscou a se pronunciar publicamente como uma pessoa que cultivava e fazia uso sagrado da planta (Ras Geraldinho) foi preso e está detido há mais de 2 anos, cumprindo sentença de 15 anos, sob acusação de “tráfico de drogas”. Ras Geraldinho tinha como intenção conseguir a autorização pela via judicial, mas seu caso ainda não chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde, caso haja mesmo justiça neste país, ele será considerado inocente.
RECREATIVO
A autorização para o uso recreativo é a via mais difícil, pois não pode se isentar do interesse em produzir o polêmico (e chapante) THC, como no caso do uso industrial, nem tampouco está amparado na Lei 11.343 ou no Tratado Internacional, como os usos medicinal, científico e religioso. Virtualmente é impossível conseguir uma autorização da ANVISA para realizar as práticas previstas na Lei 11.343 para finalidade recreativa, pois a própria Lei já define que a autorização só será emitida para uso exclusivamente medicinal e científico, abrindo vagamente uma brecha para o religioso. Num outro artigo eles citam o uso religioso, mas mais pensando no Santo Daime do que no uso religioso da cannabis, certamente. Além disso, a Lei 11.343 é um arremedo das outras leis antidrogas do passado, que tinham como finalidade principal impedir o uso recreativo, o comércio e produção para este fim, ou seja, o caminho legal é totalmente bloqueado. Mas então qual a brecha? A mesma usada pelos ativistas espanhóis e diversos outros povos para a criação dos Clubes Sociais da Cannabis. A brecha é dada pelo Tratado Internacional, ao afirmar que os países signatários não são obrigado a punir com a lei criminal as “condutas relacionadas exclusivamente com o uso pessoal”. Os ativistas espanhóis tiveram então uma sacada e criaram associações sem interesse econômico onde usuários cultivariam para usuários, distribuindo a maconha sem qualquer lucro embutido no preço, apenas compartilhando os custos e a colheita e, portanto, se enquadrando na caterogia “práticas relacionadas exclusivamente com o uso pessoal”. Todos associados legalmente numa instituição registrada. O objetivo principal é reduzir os danos relacionados com o mercado consumidor da planta na atualidade e eles têm conseguido. É claro que no início houveram intensas batalhas judiciais, muita gente cumpriu dias e meses na prisão, até que os juízes começaram a compreender que aqueles usuários não estavam traficando e sim realizando uma conduta de ordem privada, relacionada com o consumo pessoal. Hoje, apesar da maconha para uso recreativo ainda não ser legalizada, existem centenas de clubes em toda Europa, a maioria na Espanha e alguns na América do Sul, funcionando com a tolerância das autoridades policiais e judiciais locais, muitos com autorização ganha na justiça. Todos eles procuram manter as seguintes regras básicas, com variações de acordo com cada organização: 1) Só para maiores, convidados por membros associados; 2) É proibido aos sócios revender as flores; 3) As flores são fornecidas a preço de custo; 4) É Guardada a documentação de todos os associados, inclusive a declaração de que já faziam uso antes de se tornarem sócios; 5) Não há acumulo de capital, tudo é revertido para a associação; 6) É mantido um profissional de saúde a disposição dos associados, que devem realizar exames periódicos para se manterem membros; 7) É mantido um diálogo frequente e amistoso com autoridades policiais, judiciárias, políticos, e outros atores importantes da sociedade civil e do estado da cidade/região onde o Clube atua. Atualmente a formação de Clubes Sociais é considerada a via mais radical e ao mesmo tempo mais rápida e eficiente para forçar um marco regulatório do uso recreativo.
+info: publicado na última edição da Revista Maconha Brasil
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