sábado, 14 de fevereiro de 2015

Cultivar a Própria Maconha é Redução de Danos e Riscos

Por Sergio Vidal

A maconha é conhecida dos humanos há milhares de anos. Não sabemos exatamente quando começamos a utilizar as sumidades floridas dessa erva e seus extratos concentrados por causa do barato que eles causam. Por outro lado, existem muitos registros arqueológicos de que há mais de 12.000 anos nós já usávamos das fibras dos seus caules e galhos para produzir tecido, cordas e outros itens que foram fundamentais para nosso processo civilizatório e, há mais de 5.000 anos, já fazíamos uso das propriedades medicinais das suas flores e extratos concentrados. Ao longo dos séculos usamos as diferentes partes da planta, tanto as psicoativas como as não-psicoativas, para diversos outros fins, inserindo a planta de forma ampla e profunda no dia a dia das economias de diversas civilizações, em diferentes períodos da nossa história. Até o surgimento e instauração da hegemonia das políticas proibicionistas entre o final do século XIX e meados do XX, a maconha foi vegetal fundamental na economia das civilizações mais avançadas da humanidade. Cultivar, beneficiar e consumir maconha em seus diferentes formas de uso não era crime, ao contrário, fazia parte normal do dia a dia da humanidade.

Em diferentes sociedades e grupos humanos, até o início do século XX as sementes eram usadas como alimentos, por serem ótima fonte de proteína, vitaminas, fibras e outros nutrientes ou por seu óleo que, além de também servir como alimento, durante séculos, junto com o óleo de baleia, foi o principal combustível para as lamparinas; já os caules e galhos eram macerados e transformados em longas e resistentes fibras têxteis, tecidas das mais diversas maneiras, de acordo com a finalidade; e as flores eram processadas e tinham seus óleos essenciais extraídos para serem usadas como medicamento. Durante todo esse tempo, a planta nos serviu docilmente com todo seu potencial utilitário diversificado, enquanto nós humanos, predadores universais, a consumíamos em suas mais diferentes modalidades, extasiados e satisfeitos com tudo que ela nos proporcionava e, ao mesmo tempo, semeávamos a planta por todo território mundial, levando-a conosco por todos os lugares que passamos.

Porém, apesar de todo histórico de milênios de convivência e mutualismo, onde nos servíamos da planta de diversas maneiras e ela se aproveitava para colonizar todo planeta, em 1961 um Tratado Internacional assinado por dezenas de países acordou que deveriam ser feito esforços para banir os usos da maconha que não tivessem finalidades exclusivamente medicinais ou cientificas. A proposta parecia boa: Acabar com a criminalidade que envolvia o mercado ilegal das plantas e drogas medicinais para acabar com o uso recreativo e garantir as pesquisas e as aplicações medicinais. Porém na prática as coisas saíram um pouco do controle. A política que inicialmente tinha como objetivo principal dar segurança aos usos medicinais e científicos teve como consequência justamente o contrário. Ao longo dos anos as leis dos países tornaram-se paulatinamente mais severas, tornando a burocracia impeditiva para a produção e usos medicinais, ou para a realização de pesquisas científicas. Além disso, o consumo recreativo não diminuiu, ao contrário, tornou-se um fenômeno de massa. O mercado ilegal cresceu, e com ele o aumento da violência e dos crimes associados ao tráfico. Por outro lado os usos medicinais e as pesquisas científicas praticamente deixaram de existir.

Em outras palavras, as leis e políticas públicas que tinham como objetivo principal reduzir os danos e riscos do mercado ilegal tornando-o mais seguro e garantindo o crescimento das pesquisas e das aplicações medicinais, acabou tornando-se o principal fator causador de danos tanto aos consumidores quanto à sociedade em geral. Não estou dizendo que a maconha seja inócua e só as políticas e leis causem danos. Mas no caso específico da Cannabis sativa os principais danos e riscos são decorrentes dos métodos e padrões de consumo, e da forma como a substância é produzida e comercializada o que pode ser controlado com educação e políticas públicas de saúde pública. Os danos ocasionados pelos padrões de consumo geralmente estão ligados à utilização de métodos de ingestão que usam a fumaça da planta como veículo condutor dos princípios ativos e com o consumo de erva contaminada ou deteriorada, o que é quase 100% do que é vendido atualmente no mercado clandestino. A ingestão de qualquer conteúdo inalando a fumaça da sua queima provoca irritação e danos nos órgãos e tecidos dos aparelhos digestivos e respiratórios, que podem levar ao desenvolvimento de feridas e até mesmo câncer. Usada na forma de cigarros, além da fumaça em alta temperatura, a maconha libera substâncias tóxicas como o monóxido de carbono, que podem apresentar o mesmo potencial de risco que as liberadas pela queima do tabaco ou outra fumaça. Deve-se utilizar técnicas para resfriar os vapores ou fumaça, ou minimizar seus danos, antes de ingeri-la (cachimbos, piteiras, cachimbos d’água, bongs, vaporizadores, etc.), ou consumir alimentos à base da erva, ao invés de fumá-la. E, principalmente, só consumir flores frescas, recém secadas, isentas de fungos ou outras contaminações.


Como vimos, o proibicionismo é um dos principais fatores ampliadores dos riscos e danos relacionados com o uso da maconha na atualidade. Ao buscar cultivar sua própria erva o usuário, seja ele de caráter medicinal ou recreativo, está não apenas garantindo a qualidade do que irá consumir, mas principalmente deixando de colaborar com uma rede perversa de atores envolvidos no sistema que atualmente gera a maior parte dos problemas atribuídos à maconha. Cultivar sua própria maconha é, portanto, a principal colaboração que um usuário pode dar atualmente para mudar não apenas a sua realidade com relação ao consumo de maconha, mas a realidade do país. Já é hora de por as mãos na terra e começar a semear o Brasil e o planeta que queremos ver no futuro!  

+info: publicado originalmente na 2 edição da Revista Maconha Brasil


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