quinta-feira, 23 de abril de 2009

Entrevista: Edward MacRae

Edward MacRae é bacharel em Psicologia Social pela Universidade de Sussex (1968), Mestre em Sociologia da América Latina, pela Universidade de Essex (1971) e Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP (1986). Desde então desenvolve seus estudos sobre a chamada ‘questão das drogas’, trabalhando inicialmente no Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo-IMESC e no Programa de Orientação e Atendimento à Drogadependência-PROAD/EPM. Atualmente é Membro do Conselho Consultivo da ONG Dínamo, do Conselho Fiscal da ABRAMD - Associação Brasileira Multirisciplinar de Estudos sobre Drogas, professor Associado ao Departamento de Antropologia e Etnologia e pesquisador associado ao Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas - CETAD, ambos da Universidade Federal da Bahia – UFBA. É autor de mais de 40 artigos e livros sobre temas como sexualidade, movimentos sociais, uso de drogas, redução de danos, uso religioso de ayahuasca e Cannabis sativa, entre outros assuntos. Além disso, também é titular do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD, pesquisador-fundador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Psicoativos – NEIP e coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Substâncias Psicoativas – GIESP e da Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos – ABESUP.

Observatório da Cannabis:
Há quanto tempo você se dedica ao estudo das questões relacionadas ao consumo de drogas e quais seus principais interesses nesse tema? Poderia nos falar um pouco como foi seu percurso nessa temática? Sofreu algum tipo de repressão ou resistência dentro da academia?

Edward MacRae:Eu comecei a trabalhar com esse tema logo após o término do meu doutorado. O que me motivou foi a intenção de trazer à tona uma série de preconceitos, no sentido de idéias pré-concebidas, rígidas, que determinam muito do comportamento em sociedade. Essa sempre foi uma preocupação minha. Quando eu desenvolvi a minha Tese eu escolhi fazer uma pesquisa sobre o “movimento Gay”. Eu estava querendo falar um pouco sobre a existência de pessoas perfeitamente “normais”, gays, que normalmente não eram os casos discutidos nos meios de comunicação. Só se falava sobre os casos extremos, patológicos, relacionados com o crime, marginalidade, etc. Mas, por uma série de razões, esse tema deixou de me interessar. Daí eu resolvi estudar uma situação que eu via como muito parecida, que era a do uso da maconha. Nesse momento eu estava preocupado com essa questão porque eu conhecia muitas pessoas, amigos, colegas, professores universitários, indivíduos de todos os níveis sociais que eu conheci ao longo de minha vida, em vários países diferentes, perfeitamente integrados à sociedade, tanto quanto outra pessoa “normal” pode ser, que faziam uso de maconha e até mesmo de algumas outras substâncias psicoativas, que por isso poderiam refutar os preconceitos existentes por aí. Eu queria chamar atenção para os casos que não envolviam violência, loucura, nenhum comportamento especialmente desviante, ou destrutivo, fora aquele de ter que desrespeitar a lei para praticar um hábito que eu via como não especialmente perigoso. Esse foi o motivo que me levou a procurar algum lugar onde eu pudesse estudar sobre maconha. Porque não se encontram muitos documentos, bibliografia. Eu não sabia por onde começar. Então eu fui procurar o Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo – IMESC, que era encarregado de subsidiar os programas de prevenção ao abuso de drogas. Chegando lá descobri que eles não tinham nada na biblioteca a respeito do tema, e tão pouco sabiam por onde começar. Quando eles viram que eu era um doutor, me ofereceram uma série de financiamentos só para que ficar lá discutindo e estudando sobre o tema com eles. Então eu comecei a trabalhar com eles.

De fato, eu nunca tive muito problema relacionado à falta de bolsa de estudos ou financiamento, mas isso porque eu já era doutor. Porque eu estava falando a partir de uma instituição “respeitável”, “oficial”. As pessoas que davam os financiamentos, quando me viam com projetos sobre drogas, automaticamente acreditavam que eu devia ser uma pessoa que pensava como elas, porque eu estava falando de um órgão público e era uma pessoa formada. Então eu nunca tive muito problema relacionado à isso. Mas muito devido à uma situação especifica, especial minha. Eu acho que para quem estava, na época, começando, havia o grande perigo de ser desqualificado, por estar falando sobre um tema “irrelevante”, “infantil”, que certamente não seria considerado importante para ser dedicado um trabalho acadêmico a respeito. Eu senti a mesma coisa quando eu havia começado a trabalhar com a questão da homossexualidade, que na época era um campo de estudo bem recente. Agora eu acho que a situação está mais fácil. Já existe toda uma rede de pesquisadores. Mas ainda assim existe o risco da pessoa ser desqualificada, especialmente se é um estudante da graduação. Aqui na Universidade Federal da Bahia, especialmente na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas há uma grande abertura e aceitação sobre o tema. Não só aqui, em outros lugares também, mas acredito que não seja assim em todos os lugares.

O.C.:
Sobre a maconha especificamente, existem indícios de que seus uso poderia causar danos à saúde, apesar de muitos estudos mostrarem que ela seria menos perigosa que outras drogas, mesmo lícitas como o álcool e o tabaco Você acredita mesmo que a proibição da maconha tem haver com a preocupação com a Saúde Pública? Quais seriam então os reais motivos para ela continuar proibida, em sua opinião?

E. M.:
Eu acho que a preocupação com a Saúde Pública é muito usada como pretexto. A situação da Saúde Pública no Brasil é catastrófica e nem por isso se costuma usar a polícia para tentar resolver os problemas. Eu acho que há toda uma preocupação legítima de Saúde Pública, pessoas perfeitamente honestas preocupadas com a questão, etc. É uma questão de Saúde Pública sim. Porém, o que leva a essa reação tão violenta, tão extremada por parte da legislação, dos órgão de repressão e mesmo da população em geral? Como você mesmo falou, uma substância como o tabaco, que é muito mais comprovadamente danosa, principalmente da forma como é utilizada normalmente, só agora, após anos de relaxamento, está recebendo certas medidas de controle, em alguns casos até drásticas demais, a meu ver. Mas, mesmo assim, são formas muito mais brandas do que as usadas para controlar a questão da maconha. Então eu acho que são outros fatores que estão postos aí. Se formos ver a história da proibição da maconha no Brasil, veremos que seu uso foi muito difundido no Brasil, principalmente entre a população negra, desde a época da escravidão. Era mais um traço cultural, análogo ao Candomblé, à Capoeira, etc, uma tradição que tem origens africanas, apesar das suas características específicas que ganhou em solo brasileiro, era uma coisa que, nessa época, era claramente identificada com a população negra. Então, podemos ver como a proibição da maconha, que foi uma das últimas substâncias a serem colocadas no rol das substâncias proscritas, facilitou uma abordagem investigativa, repressora, para com a população negra na época, que era vista como a “maconheira”. Qualquer negro virou suspeito de ser “maconheiro” e, por isso, passível de ser parado na rua, revistado, levado à delegacia para interrogatório, sofrer investigação, etc. Posteriormente, vemos que quando houve uma nova lei para reprimir o uso de drogas, incluindo a maconha, que era de fato a mais usada. Essa lei, de 1976, é criada justamente num período ditatorial, repressor, onde havia uma juventude estudantil, de classe média, urbana, que era vista como os grandes adversários e inimigos desse sistema, de onde saiam os guerrilheiros, as contestações culturais, vistos como ameaças aos fundamentos da moral cristã, e das bases ideológicas da Ditadura, do Regime Militar. Havia toda uma repressão, que não era só política, mas de costumes. Contra cabelos compridos, tipos de música, de modos de vestir, de agir, de pensar. Portanto, havia toda uma forma de contestação que era cultural, porque a Ditadura já havia fechado todas os meios de contestação políticas. Então, essa lei servia para manter sobre controle essa parte da população, a juventude, intelectuais, artistas, que era reconhecida como habitualmente consumidora de substâncias psicoativas.

Sobre a lei atual, considero muito bem vinda, já que faz uma distinção entre usuários e traficantes. Mas, por outro lado, essa também é uma forma de separar membros da classe média, reconhecidos como os usuários, mais capazes de fazer protestos, reivindicar os seus direitos, que seriam muito mais difíceis de criminalizar atualmente, daqueles que seriam os supostos traficantes, oriundos da camadas mais pobres da população, das periferias, sem muitas opções de inserção social, e que por isso se engajariam no tráfico. Hoje em dia, temos uma sociedade capitalista, neoliberal, extremamente excludente, que expulsa cada vez mais pessoas do sistema, que têm que viver à margem e que são vistas como uma ameaça pela sociedade. Então, nessa lógica, teríamos que ter alguma forma de controlar esses “novos bárbaros” e nada como uma lei bastante genérica contra traficantes para fazer isso. Assim, todas as pessoas que são dessa parte excluída da sociedade são automaticamente consideradas traficantes, ou relacionadas ao tráfico, taxada como “daquele mundo”. Dessa forma, todos eles podem ser enquadrados nessa categoria e quando há ações violentas de repressão em favelas e bairros pobres, que matam pessoas, violam direitos humanos, etc, são consideradas justificáveis em nome da “Guerra às Drogas” e do objetivo de manter essa população sobre controle. Eu acho que essa lei serve muito para reforçar os órgãos de repressão e manter esse tipo de ordem que nós estamos vivendo hoje.

Por outro lado, a população brasileira tem uma série de características abertas, é criativa, gosta de novidades, mas ainda temos um ranço conservador e autoritário extremamente forte. A implantação e manutenção da proibição das drogas é uma espécie de ritualização, de reforço ritual desse nosso autoritarismo nato, que grande parte da população tem e que a sociedade brasileira carrega. A proibição simbolicamente reforça isso. Há uma autoridade, alguém “lá em cima”, que “sabe mais” sobre o assunto, à qual é preciso obedecer, senão as sanções podem cair sobre si. As pessoas gostam disso. Você encontra muitas pessoas que de fato estão sendo prejudicadas por essas leis, mas que acabam a apoiando e reforçando isso.

O.C.:
Em seus estudos você tem enfatizado o aspecto relacionado ao uso controlado de substâncias psicoativas, a partir do que é chamado “controles sociais informais e formais”. Você poderia nos explicar um pouco melhor esse conceito e como ele se aplicaria no caso da maconha?

E. M.:
Esse conceito é uma coisa básica da Sociologia. Todas as práticas e relações sociais são, de certa forma, governadas, moldadas, não completamente determinadas, mas elas são influenciadas de uma forma importante, são plasmadas pela pressão dos nossos pares, dos vizinhos, por certas normas e regras de condutas que todos nós temos internalizadas. Temos um jeito “certo” de vestir, comer, falar, etc. E isso são noções que nós aprendemos em sociedade, que são reforçadas o tempo todo. Nós reforçamos nas outras pessoas e as outras pessoas em nós. É raro, em nosso comportamento, fazermos alguma coisa pensando “não vamos fazer isso porque a polícia pode nos pegar”. Fora de certas camadas mais marginais, a maior parte das pessoas não passa o tempo todo com medo da polícia. O comportamento passa por uma certa auto-valorização, que tem a ver com como as outras pessoas vão entendê-lo. Então as pessoas carregam controles sociais internalizados, que são muito mais fortes do que simplesmente a ação dos órgãos de repressão, que atuam sobre certos problemas pontuais, os resolvem e depois vão embora. E quem continua segurando as relações entre as pessoas são esses controles internalizados que nós todos carregamos. Esses controles que existem na vida normal de todo mundo persistem também em atos que podem até ser contra a lei, mas que são realizados em sociedade, em grupos sociais. Os pesquisadores das Ciências Sociais admitem que a cultura de um pequeno grupo vai influenciar a forma como são usadas as substâncias psicoativas. Esse grupos, em geral, visam a sua permanência, a sua satisfação. Não são pessoas suicidas. São pessoas que querem estar bem na vida. Esses grupos funcionam de uma forma que garanta a sua auto-preservação. Nesses casos de grupos que usam essas substâncias eles buscam a melhor forma de usá-las, com o menor prejuízo possível. Então eu acho que precisamos buscar formas de dialogar com a cultura desses grupos, e também estabelecer e fomentar idéias novas em certos lugares da sociedade, de uma forma respeitosa para com essas culturas, e saber que essas pessoas basicamente são capazes de cuidas de si mesmos.

O.C.:
Alguns dos seus trabalhos têm levantado a existência de grupos que mantém uma relação religiosa com a planta no Brasil. Você poderia nos falar um pouco a respeito disso e de como poderíamos aproveitar o exemplo do que ocorreu com regulamentação do uso religioso da ayahuasca para discutir o uso religioso da Cannabis?

E. M.:
Eu acho que foi muito interessante a regulamentação do uso religioso da ayahuasca, porque mostrou que é perfeitamente possível e legítimo existir uma relação espiritual com uma substância que pode deslanchar certos tipos de transe místico, análogos aos transes de religiões de matriz africana no Brasil. Nos ajuda a entender e respeitar que há vários tipos de transe religioso que são legítimos. A questão da ayahuasca foi absorvida e entendida pelo Estado. Além do fato de haver uma legitimidade histórica e culturalmente reconhecida, isso foi possível, em grande parte, porque não havia uma proibição à plantas usadas para preparar a ayahuasca e nem havia muito conhecimento, até recentemente, sobre o uso religioso da ayahuasca. Então, quando surgiu um movimento para estabelecer as normas para o uso, houve uma certa resistência, mas não havia leis sobre o tema, o que facilitou essa iniciativa. Mas eu acho que, com esse exemplo, devemos lembrar que existem outras religiões no Brasil que usam as mais variadas substâncias para facilitar os transes espirituais. Houve uma época que até mesmo um grupo específico do Santo Daime, entre os diversos grupos existentes de religiões que utilizam a ayahuasca, desenvolveu uma forma ritual, sagrada, espiritual e respeitosa de usar a Cannabis. Mas por ser uma atividade ilegal não pôde se desenvolver. Havia, por parte de outros grupos, de órgãos do Estado, etc, uma forte resistência e oposição a essa prática, baseada em preconceito e idéias formadas há muito tempo que associavam a planta ao crime, à marginalidade, etc. Assim, ficou muito difícil mudar essas idéias e convencer as pessoas de que a planta é capaz de levá-las à lugares de bondade, iluminação, alegria, amor, etc.

Um uso mais comum é o realizado entre os Rastafari. Sabemos que a religião ou filosofia Rastafari praticada na Jamaica, com seu arcabouço doutrinário, realiza o uso da ganja para elevação espiritual, dentro de algo que podemos reconhecer mais facilmente como uma religião institucionalizada. No Brasil, a cultura Rastafari se diferenciou, ganhou elementos próprios e não sofreu o mesmo processo de institucionalização que na Jamaica. Porém, isso não significa que essa cultura seja menos legítima que a jamaicana e que o ethos encontrado por aqui seja inferior ou menos qualificado que o encontrado na Jamaica, mas que também é uma forma legitima de busca por valores, formas de vida consideradas mais elevadas, mais espiritualizadas, mais naturais. Há toda uma preocupação nesse movimento com idéias como paz, justiça, igualdade, fraternidade, amor. Eu acho que podemos dizer que essas pessoas também fazem um uso espiritual. É interessante notar, por exemplo, que há uma quantidade grande de pessoas que fazem esse tipo de uso, às vezes até de forma inconsciente, sem que a discussão sobre essa questão seja considerada relevante. Eu acho que há uma população tão grande que se identifica com a cultura Rastafari, o jeito de ser, viver, pensar, etc, que essa parcela da população deve ser mais ouvida, entendida e respeitada nessa sua prática de usar a ganja.

O.C.:
Você tem apoiado a Marcha da Maconha em Salvador, tanto o ano passado quanto esse ano. Você acha que as manifestações desse tipo são um caminho para mudar a realidade política e social do país em relação a esse tema?

E. M.:
Eu acho que um dos problemas mais graves que são enfrentados nessa busca por uma mudança na lei é a existência de uma série de preconceitos enraizados nas pessoas e que nunca mereceram maior reflexão a seu respeito. Todo mundo acha que as drogas são apenas um flagelo para a juventude que deve ser combatido; que as culturas das drogas devem ser exterminadas e que os traficantes são extremamente perigosos; que os usuários de drogas são pessoas que estão se destruindo e que não tem futuro na sociedade. Há uma série de preconceitos, e as pessoas que tentam desconstruí-los são taxadas como loucas e têm seus discursos desqualificados. O que é preciso fazer, em primeiro lugar, é atacar de uma forma concentrada essas noções pré-concebidas. Precisamos forçar a abertura do diálogo, de discussões sobre o tema. Eu pessoalmente acho que a lei deve ser mudada, por ser cheia de problemas. Eu tenho uma série de críticas sobre ela, mas eu mesmo, sozinho, não me atreveria a propor uma idéia que seja a solução para a questão. Esse é um tema muito complexo que precisa de muita discussão, estudos, diálogo, etc. Acho que tem que haver muita participação nesse processo e talvez devamos pensar em modelos com os quais nunca nem sonhamos. Mas, antes de tudo, precisamos garantir que esse seja um assunto legítimo de ser discutido, que idéias diferentes das tradicionais possam ser sugeridas e que os argumentos sejam pesados pelos seus valores intrínsecos e não por suas qualificações ideológicas ou morais. Por isso acredito que, nesse momento, nossa função seja o que eu chamo de “trabalho de formiguinhas”, que é o de sair por aí, nas nossas relações pessoais, de trabalho, familiares, de escola, tentando quebrar um pouco os preconceitos, realizando pesquisa, estudos, debatendo temas, organizando debates, Marchas da Maconha, etc, participando de várias maneiras na criação desse diálogo onde possam surgir idéias novas.

O.C.:
Queria aproveitar que você falou da nova lei e saber sua opinião sobre o Projeto de Lei 252, proposto pelo Senador Demóstenes Torres, que determina o aumento da pena para a pessoa que planta para consumo próprio e prisão para aqueles que se recusarem a cumprir as medidas sócio-educativas previstas na lei.

E. M.:
Eu acho que é mais um exemplo, nesse momento em que o Legislativo Brasileiro está tão desmoralizado, de um político que utiliza a questão para passar a mensagem para a população brasileira de que está preocupado com a “moral e os bons costumes” e que por isso deveria ser considerado um bom parlamentar, somente por ser contra os usuários de drogas. É mais um exemplo de como essa lei serve para que os políticos, a qualquer momento, possam cortejar àqueles com pensamentos repressores, autoritários, conservadores, encontrados na população brasileira, dos quais falei anteriormente. Sobre essa questão de propor a prisão para os usuários que descumprem a decisão judicial, eu acho que antes deveria ser feita uma pesquisa para saber como está ocorrendo isso na prática mesmo, como o sistema está funcionando, para saber se essa é de fato uma questão relevante e que mereça a alteração na lei. Até agora não me parece ser um grande problema. Parece-me que ele está na verdade tentado retomar e reforçar a idéia de que o usuário é um criminoso, idéia essa que foi enfraquecida com essa nova lei. É um pensamento retrogrado, conservador e que deve ser criticado. Não deve ser considerado como sério, mas deve ser mantido em vigilância, pois pode ter conseqüências muito perigosas.

Porém, pior do que isso, é a perseguição ao auto-cultivo. Eu acho que o auto-cultivo, num futuro menos repressor, onde houvesse mais possibilidade de falar sobre isso, seria um ótima item para ser incluído em programas de redução de danos. Porque, além de permitir que os indivíduos tenham maior controle de qualidade sobre o que estão consumindo, faz com que os usuários percam o vínculo com o mercado ilícito da substância e ainda introduz mudanças importantes na forma como essas pessoas pensam e vivenciam sua relação com a planta e com a substância que consomem. Parece bobagem, mas há toda uma cultura que envolve técnicas de jardinagem, uso de lâmpadas, sementes, fertilizantes, que é das mais pacíficas e naturais, digamos. Seria uma alternativa à necessidade dos usuários manterem uma relação com o tráfico de drogas, facilitando a separação entre os usuários considerados socialmente integrados das condutas que realmente podem trazer danos à sociedade. Para mim é um completo contra-senso procurar reprimir as pessoas que estão plantando apenas para consumo próprio. Pra que isso? Qual é realmente a intenção por trás disso? Será que isso é realmente para proteger a sociedade ou serve manter o esquema atual que gera corrupção, violência e reforça os mecanismos de repressão e autoritarismo?

O.C.:
O ano passado a Marcha foi proibida em quase todo o país após uma ação iniciada pelo Ministério Público. As autoridades na Bahia foram as primeiras a proibir e intimar algumas pessoas a depor, entre elas você mesmo. Poderia nos falar um pouco a respeito desse episódio?

E. M.:
É curioso que esse fato foi mais um que serviu para chamar a atenção para o absurdo da situação que nós vivemos hoje. Porque o que se propunha era simplesmente a realização de uma Marcha para pedir a mudança na lei. Era uma Marcha para levar a público idéias que normalmente não são discutidas ou veiculadas. Não era, nem é, uma tentativa de incentivar o uso, ou a qualquer outro crime. A idéia proposta era levar a uma discussão. O Ministério Público achou que isso era uma ameaça e resolveu calar essa manifestação. Mas sua atuação foi tão obviamente repressora, arbitrária e atentando a direitos constitucionalmente garantidos, de livre expressão, por exemplo, que chamou tanto a atenção que a imprensa e muitas autoridades, advogados, políticos, juristas, etc, se posicionaram contrários a tal decisão. Eu acho que, com isso, os propósitos da Marcha da Maconha foram em parte realizados, mesmo não tendo havido a Marcha na maioria das cidades. Eu acho que essa forma repressora acabou atuando de certa forma como um “tiro que saiu pela culatra”, para o Ministério Público e outras pessoas e instituições que querem silenciar essa discussão.

O.C.:
Você acha que ainda é aceitável a repressão ao debate sobre mudanças políticas após 20 anos do restabelecimento do Estado Democrático de Direito?

E. M.:
É claro que é inaceitável isso. E não sou eu que estou falando isso. Como falei, diversos indivíduos e instituições de respeito, que são especialistas nessa questão têm se colocado contra esse tipo de censura. Eu vivi uma época da Ditadura e posso afirmar que hoje em dia, em relação ao tema das drogas, a situação é bem parecida com o que ocorria com outros temas políticos. Agora, talvez, seja mais parecido com o período do fim da Ditadura, no qual você até podia falar sobre algumas coisas, mas nunca se sabia ao certo sobre o que e de que maneira seria permitido falar, e quando surgiria algum tipo de censura sobre o assunto. Acho que, em relação ao tema das drogas, estamos revivendo essa fase hoje. Espero que esse ano a Marcha da Maconha seja reconhecida como algo que não está promovendo nenhum ato criminoso, mas está simplesmente querendo levantar uma discussão política. Dentro de uma Democracia deve haver essa possibilidade, mesmo que seja uma opinião que muita gente seja contra, é a opinião de um grupo da sociedade que deve ter seu direito à manifestação assegurado.

O.C.:
Queria agradecer muito pela entrevista e terminar pedindo que você deixe uma mensagem para as pessoas que estão se mobilizando para organizar as Marchas em todo o país e no mundo.

E. M.:
Eu acho que a Marcha da Maconha é uma das coisas corretas de serem feitas. Como eu disse, nesse momento, o trabalho deve ser mesmo quase de corpo-a-corpo com as pessoas para tentar soltar um pouco as amarras dos pensamentos pré-concebidos que, até pouco tempo atrás, ninguém queria se dar ao trabalho de refletir a respeito para ter certeza se estava realmente de acordo ou não com a realidade da sociedade atual. Eu acho que nossa função é realmente a de estar o tempo todo cutucando a sociedade, de várias formas, para provocar reflexões sobre o tema. Devemos lutar para mostrar à sociedade que existe sim um uso que é bastante integrado, que não é suicida, violento, danoso, etc, e que certamente é muito menos perigoso aos indivíduos ou à sociedade do que o uso dos automóveis por exemplo, que atualmente são uma das principais causas de morte e acidentes. Precisamos lembrar que a vida é cheia de riscos e que todas as pessoas, em todas as práticas, procuram evitar o tipo de uso que vão levá-las para um resultado danoso que elas realmente não querem. Reconhecer e mostrar que a maior parte das pessoas realiza um consumo seguro, colaborando para que a sociedade em geral reconheça também que a maior parte desses usuários realiza um uso positivo da substância. A caminhada ainda é muito longa, mas precisa começar a ser trilhada com coragem, perseverança, esperança e organização. Eu acredito que a Marcha da Maconha está conseguindo dar passos largos num caminho que até pouco tempo atrás estava completamente fechado pela ignorância, pelo preconceito e pelo autoritarismo.

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